Dirijo-me ao leitor
Que a leitura cultiva
Trazendo neste cordel
O labor que me motiva
Na engenharia de versos
Com cordelistas diversos
Que a tradição incentiva
Escolhi uma narrativa
De quand'eu era criança
Um causo de lobisomem
Já perdido na lembrança
Que aproveito pra contar
Neste cordel relatar
Pois a idade avança
A memória já descansa
Nem tudo é pra ser lembrado
Aos poucos vamos puxando
Este fio lá do passado
Dos guardados da infância
Encurtando essa distância
Contando em verso rimado
O causo aqui relatado
Pra situar o leitor
Deu-se no alto sertão
Com um cristão pecador
Que em noite de lua cheia
Se virava volta e meia
Lobisomem aterrador
Nas vilas do interior
Era a lenda recorrente
O causo de lobisomem
Amedrontou muita gente
Em segredo ou cochicho
Acusavam: "vira-bicho"
Qualquer estranho vivente
E o medo decorrente
Na mente da garotada
Na noite de lua cheia
A memória era ativada
Chegando dezoito horas
Meninada sem demora
Ficava em casa trancada
A maldição relatada
Nos enchia de pavor
E o caso acontecido
Que agora quero expor
Não foi vivido de fato
É lembrança do relato
Do tempo do meu avô
Foi um tio quem me contou
Que em uma Lua cheia
Surgiu na beira da serra
Um cachorro sem pareia
Do tamanho d'um jumento
Ele naquele momento
A espingarda tateia
O estampido clareia
E faz ouvir pelo ar
O bicho ganhou o mato
Se ouvia o mato quebrar
E daquela aparição
Começou aperreação
Meu tio pegou a contar
Logo cedo foi olhar
Pra fazer a vistoria
Não tinha marca de sangue
E nem pegada havia
Nem tinha mato quebrado
O bicho estava encantado
E isso ele bem sabia
Então marcou a vigia
No paiol se escondeu
Olhando por uma greta
Assim que anoiteceu
Deixou um bode amarrado
O trabuco carregado
E lá fora era só breu
Quando o bicho apareceu
Parecendo que sabia
Ficou olhando de longe
Distante quanto devia
Nos olhos as labaredas
Iluminava a vereda
De imaginar arrepia
Longe um cachorro latia
E o bicho correu pra lá
E meu tio ficou na toca
Esperando ele voltar...
Ao amanhecer então
Sentiu falta de um leitão
E viu outro a manquejar
Muita gente do lugar
Nessa noite em questão
Tinha notícia do bicho
E da sua aparição:
Teve rondando a janela
Quase a tranca desmantela
Atrás de um pobre pagão
Isso chamou atenção
Pois naquela redondeza
Aquele recém nascido
Era um anjo sem defesa
Então fizeram outro plano
O lobisomem tirano
Acharia uma surpresa
E com toda esperteza
Só uma ideia fervilha
Um espeto na janela
Pra fazer uma armadilha
Pra quando o bicho voltar
Se ele tentasse entrar
Espetava na virilha
E no chão uma forquilha
Com a ponta bem afiada
Para o caso de entrar
Receberia estrepada
Nem sentiria o respiro
Pra dar tempo dar o tiro
Arataca estava armada
Preparada a emboscada
Com todos dentro esperando
Três cabras apreensivos
Com a criança chorando
A mãe toda assombrada
Com seu pagão agarrada
E a noite avançando
O bicho chegou uivando
Coisa de arrepiar
O choro da criancinha
Só parecia aguçar
Quando chegou na janela
O espeto na costela
Fez logo o bicho urrar
Nem deu tempo atirar
No bicho que em disparada
Deixou um rastro de sangue
Pela beira da estrada
Depois sumiu pelo mato
Restando só o relato
Dessa estória assim contada
Bastou só uma espetada
E o bicho debandou
Tudo indica que aquele
Nunca mais se transformou
Mas sempre causava medo
Meu tio contando esse enredo
Com seu tom assustador
Não tem melhor narrador
No prazer da contação
Nossos tios nossos avós
Pra contos de assombração
No aconchego do alpendre
Ouvindo é que se aprende
E se guarda a tradição
E a próxima geração
pela linha sucessória
Com a viva oralidade
Repertório de estórias
De rica imaginação
De verdade ou invenção
Manterá viva a memória
Pra concluir esta história
Para o querido leitor
Informar que o lobisomem
Era só um pecador
Naquela confrontação
Perdeu sua maldição
Teve a luz do criador...
Curioso o narrador
Antes de ir pro além
Deixou-se ver uma marca
Numa costela tembém
Por coincidência infeliz
A vistosa cicatriz
Numa vista por ninguém...
Inamar Coelho, 22/11/2021
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