quinta-feira, 4 de março de 2010

Uma guerra de Canudos

Tela de Tripoli Gaudenzi

Uma guerra de Canudos

I
Numa terra esquecida
pelo poder social,
onde o desafio à vida
é coisa bem natural,
surge Antônio Conselheiro
o beato caminheiro
no pequeno arraial.

Bradando contra a injustiça
pregando o nome de Deus:
não era uma fé postiça
queria empenho dos seus.
E por seu dever sagrado
estava então condenado,
(por isso Jesus morreu).

Já não bastava a secura,
o sol inclemente e a fome,
a esperança obscura,
a mão do céu e do homem:
a tal República surgiu
pra refundar o Brasil
numa arrogância sem nome.

II
Então é bom relembrar
desse caso acontecido
e que carece mostrar
o vencedor e o vencido:
o massacre vergonhoso
de um povo corajoso
de um jeito imerecido.

O caso que vou contar
aconteceu no sertão;
ouve-se muito falar
todo tipo de versão:
periquito me contou
que o governo lá ganhou
por causa do tal canhão.

O governo utilizou
o jornal pra alardear
que o sertão provocou
então devia enviar
a mão de ferro da ordem
sobre aquela desordem
para tudo controlar.

III
A Igreja se sentia
tanto quanto ameaçada:
o povo dela fugia
pra seguir a caminhada
do beato conselheiro
pelo sertão inteiro
numa grande cruzada.

Que pregava contra o mal
do casamento civil;
contra a ação letal
da República do Brasil;
contra imposto desonesto;
contra  escravidão e o resto:
daquela presença vil.

Então o exercito foi lá
cheio de convicção
que iria sufocar
suposta rebelião,
pois os padres reclamavam
e os coronéis conspiravam
o fogo era a solução.

IV
Canudos foi o lugar
onde o embate se deu,
começou em Uauá,
lá o primeiro morreu:
Centena do conselheiro,
10 do exército brasileiro.
(o inesperado aconteceu)

O povo não esperava
aquela tocaia infame:
na hora todos rezavam
pedindo ao santo nome
da santíssima trindade
que acabasse a crueldade
da tirania e da fome.

Os cento e pouco soldados
armados até os dentes
tomaram o povoado
mandados por um tenente.
Recuam pra Juazeiro
estropiados do primeiro
ataque aos penitentes.

V
O povo lutou com faca,
foice, enxada e ferrão,
tora de pau e estaca,
guiada, forquilha e facão
contra bala de fuzil,
Brasil contra brasil:
o sangue regou o chão.

Era novembro dos oitocentos
dos anos noventa e seis;
a guerra principiando
então vinte e um do mês:
a tropa foge assombrada
daquele gente arretada
pelo estrago que fez.

Agora o beato sabe
que a guerra está por vir
e antes que tudo acabe
chama o povo a se unir:
brada com voz de trovão
e o povo com devoção
está pronto pro devir.

VI
A postura de profeta,
o discurso fervoroso,
ao lado da vida incerta
do futuro pavoroso,
o beato era a esperança:
conquistou a confiança
e um séqüito poderoso.

Coronéis perdiam braços,
a Igreja seus vinténs,
a República tinha os passos
ameaçados também:
ela não podia ficar
parada sem se vingar
criticada por alguém.

Canudos era o lugar
que a todos pertencia,
de tudo tinha por lá
e todo tipo aparecia:
roceiro, andante, ex-escravo,
vaqueiro, sabido e parvo,
João, José e Maria

VII
Era então um outro estado
Bom lugar pra se viver,
na igualdade fundado
lá era o fim do sofrer:
podia ir preto e pobre,
de todo tipo, até nobre
fugindo do tal poder.

Poder que cobrava imposto
e nada de mais trazia,
a não ser grande desgosto
de ser mais uma tirania.
No jugo dos coronéis
a seca, e nem um réis
com a fome à revelia.

O governo organizou
uma nova missão:
uma guerra iniciou
cá no tórrido sertão.
Já não bastava a miséria
ainda vinha tal quimera
pra conter revolução.

VIII
Em dezoito de janeiro
de noventa e sete o ano
Quando Antônio Conselheiro
já esperava o tirano:
Febrônio com dois canhões
e mais de seiscentos cagões
que vinham por monte santo.

Fuzis Comblain no sertão
e o sertanejo a punhal
numa guerra sem feição
lutando o bem contra o mal:
o exército exaurido
dez mortos, setenta ferido
era o baile infernal.

Foi a segunda investida
contra o povo do beato:
foi uma batalha perdida
macaco ganhou o mato.
A tropa foge assombrada
pois o beato esperava
aquele ardil tão ingrato.

IX
Aquilo humilhou o poder
e fortaleceu Canudos:
por Febrônio pra correr
com o tal do canhão e tudo,
mas o beato bradava
que a República se armava
com toda a ira do mundo.

A palavra dirigida
ao coração daquela gente
plantava a força regida
por um discurso eloqüente:
tavam todos preparados
de corpo e alma armados
para a morte iminente.

Entrou fevereiro e nada,
só no dia dois de março
a República veio irada
pra fazer estardalhaço:
Moreira Cezar arrogante
o exército confiante
que não haveria fiasco.

X
O coitado se deu mal:
o sertanejo revidou.
Já não era só punhal,
era arma sim senhor,
agora era luta à altura
o beato na postura
de profeta sem temor.

Canudos então venceu
a terceira batalha,
ali mais de cem morreu,
Moreira Cezar levou bala:
ferido saiu levado,
no braço por um soldado,
sem arrogância e sem fala.

Canudos muito mais forte
armado até os dentes,
não dependia da sorte
o séqüito penitente:
Provava para o Brasil
que aquele povo bravio
não se entrega facilmente.

XI
Os jornais alardeavam
o perigo que surgia,
os militares se organizavam,
a República rugia:
agora é pra valer
canudos vai se render
ante a soberania.

O sertanejo esperava
rezando em penitência.
Conselheiro bradava:
de Deus é a eminência,
aquele que ali padece
está pronta a sua messe
sem rogar intercedência.

Veio a quarta expedição
lá pelo final de junho,
marcha em dupla direção,
todos de armas em punho:
mais de seis mil soldados
vindo de dezessete estados
com toda a ira do mundo.

XII

Doze canhões potentes,
seis para cada brigada;
fogo aos penitentes
a hora era chegada,
só não foi outra carreira
porque tinham a matadeira:
a arma endemoniada.

C’um tiro só fez estrago,
era o canhão infernal,
só assim tava vingado
o orgulho nacional:
em outubro tudo acabou
com garra, fé e valor
numa luta desigual.

A matadeira calou,
Canudos tava arrasada:
dos trezentos que sobrou
a cabeça foi cortada
fechando com chave de ouro
a chacina que levou louros
da República vingada

XIII

Não é a historia oficial
que se conta no Brasil,
é uma história marginal
de um povo varonil
que um dia disse não
ao que quis a nação:
fazer o povo servil.

Canudos não se rendeu,
mas lutou até o fim.
Sertanejo lá morreu
por recusar dizer sim
aos coronéis de plantão
à miséria, à escravidão
e tudo se deu assim.

Depois o governo foi lá
e construiu um açude
como se quisesse burlar
a crueldade amiúde
mas quando o verão aquece
lá canudos reaparece
e a verdade se refunde.


Inamar Coelho 24/08/2007