terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Estória de botija




Estória de botija 

Tem vezes que o ser humano
Sabe que nasceu sem sorte
Quando se fala em riqueza
É como faca sem corte
Sem o tesouro encontrar
Sua sina é trabalhar
Do nascer até a morte
 
Trago um pequeno recorte
Um causo de relevância
Contado por minha avó
Nas estórias da infância
De um sonho inquietante
Por demais interessante
Dada toda circunstância
 
Muito brilho e cintilância
No sonho uma aparição
Informando de botija
Dando a localização
Uma alma de outro mundo
Esvaindo num segundo
Começa a consumição
 
Sente bastante aflição
Medo e curiosidade
Desenterrar a botija
Coisa de tal gravidade
Aquilo lhe deu insônia
A proposta era medonha
Dava até ansiedade
 
Sem muita credulidade
Tratou logo de esquecer
Era só um sonho besta
E voltou a adormecer
Lá vem novamente a alma
Informando com mais calma
Fazendo vovó tremer
 
Estava o sol pra romper
E o sonho se repetindo
Dando conta da botija
A aparição instruindo
Com a hora e o lugar
Onde tinha que cavar
Mas também lhe prevenindo
 
Vovó ainda dormindo
Naquele sonho sonhado
Todas orientações
Já tinha memorizado:
“Ao começar a cavar
Jamais podia parar
Até ter desenterrado”
 
“E que tivesse cuidado
Com visage e aparição
Que pra tirar a botija
Tinha essa condição
Não ter um pingo de medo
E também fazer segredo
Pra não chamar atenção”
 
“Sabendo de antemão
Que o dono vai intervir
Pra proteger a botija
Se caso não conseguir
O ouro vira em torrão
A prata vira carvão
Se por medo desistir”
 
Até vovó decidir
Passou quase oito dias
Desenterrar a botija
O interesse crescia
O medo se acabando
E ela se imaginando
“Rica da noite pro dia”
 
Pondo fim nessa agonia
E resolvendo encarar
Perto da meia noite
Dirigiu-se ao lugar
Já no meio do caminho
Passou por ela um velhinho
Caminhando devagar
 
Passou sem nada falar
E vovó ficou cismada
Um velho desconhecido
Sozinho de madrugada
Numa noite tão escura
Aquela triste figura
Seria alma penada?
 
Vovó já arrepiada
Com medo de assombração
Foi logo apertando o passo
Com a enxada na mão
Procurar na quixabeira
Começando a tremedeira
Quando aparece um anão
 
Deu um frio no coração
Ver aquela personagem
Mas vovó passou direto
Surpresa com a coragem
Lembrando o ensinamento
Que sobre aquele momento
Teria muita visagem
 
Sentiu mexer na folhagem
E deu um frio na espinha
Poderia ser uma onça
Perigo ali sozinha
Do mato veio um jumento
Com um urro agourento
Que vovó ficou durinha
 
Mas continuar convinha
Segue em frente não recua
Muitas sombras no escuro
Na intermitência da lua
Avistando a quixabeira
Solitária na clareira
Ali vovó se situa
 
Mais coragem que possua
Em dada situação
Desenterrar a botija
É indigesta missão
Se conseguir fica rica
Mas a coisa se complica
Com medo de assombração
 
Pegou logo o enxadão
E começou a cavar
Já tava ficando fundo
Já perto de encontrar
Uma luz azul intensa
Na escuridão suspensa
Começou se aproximar
 
Vovó pegou a rezar
Quase toda arrepiada
Apresou a cavação
Quando surge na estrada
No meio da treva espessa
Um cachorro sem cabeça
Com uma velha montada
 
Ao levantar a enxada
Contra aquela aparição
Amarela de terror
Desviou a atenção
Daquela regra tão rija
Que pra tirar a botija
Só coragem e oração
 
Com aquela reação
A luzerna se apagou
O cachorro sem cabeça
Como que evaporou
Pra desgosto de vovó
A botija virou pó
O encanto se quebrou
 
Essa estória ela contou
Como tantas que contava
Com tanta convicção
Que chega o olho brilhava
São curiosas estórias
Que guardamos na memória
E a infância embalava
 
E a gente escutava
Dormia morrendo de medo
Se enrolava na coberta
Sem deixar de fora um dedo
Estória de assombração
Se era verdade ou não
Ninguém sabe, é segredo
 
 
07/12/2021


Um comentário:

  1. Essas histórias são cosmogonias. Cabe à gente recontá-las como você fez lindamente!!!

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