sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A morte da feira (de Euclides da Cunha - Bahia)

A morte da feira (de Euclides da Cunha - Bahia)

Caro povo desta terra
Cumbe cidade boa
O nome que sempre ecoa
Por causa da grande guerra
Seu povo acolhedor
Acolhe parvo ou doutor
E não pede pagamento
Povo pacato e feliz
Quem vem de fora é quem diz
Terra de encantamento

Mas não posso esconder
Também tanta pobreza
Na sede e na redondeza
É algo duro de ver
O único bem do pobre
É o dia de ganhar o cobre
Na feira livre do sábado
Já querem mudar seu dia
Pra sexta o rádio anuncia
E o povo preocupado

Proposta sem cabimento
Só beneficia o lojista
Que quando vende a vista
É um acontecimento
Enquanto o pobre na feira
Compra pra família inteira
Com um precinho barato
A mesma roupa da praça
A vista e quase de graça
Comida roupa e sapato

Mudando pro dia da sexta
Barraqueiro não vem cá
Fica em outra feira lá
Claro que ninguém é besta
Comércio fecha mei'dia
A feira fica vazia
E o pobre fica arrasado
Tendo que comprar na loja
Com um preço que enoja
Até quem é endinheirado

Querem que mude o dia
Pra não pagar hora extra
Sendo mudado pra sexta
O sábado é meio dia
Muito pobre nem vem cá
Nem vender e nem comprar
Pois a sexta é dia útil
Dia de ganho na roça
É uma tradição nossa
Pra vir pra feira é inútil

O sábado é dia de festa
Pro pobre e também pro rico
Comprar sulanca, penico
O que presta e o que não presta
Madame compra na feira
Roupa pra família inteira
E sai com pose granfina
O lojista chupa o dedo
E reclama do desprezo
Quando não enche a vitrina

A cidade muito cresceu
Com a feira grande, completa
De tudo ela é repleta
E orgulho de todos e meu
Vem barraqueiro de fora
Com novidades da hora
E vestem nossas meninas
Nas barracas comem almoço
É tudo um alvoroço
"Inda compram gasolina

Daqui não temos nada
Nem roupa e nem banana
Farinha, feijão e laranja
É tudo coisa importada
De Sergipe principalmente
Para sorte dessa gente
Feira farta e mais barata
Quem quiser mudar a feira
Só faz grande besteira
É coisa rude e ingrata

Mas não fica só na data
Vão também mudar o lugar
Pra acabar de completar
Essa medida ingrata
Pro centro de abastecimento
Tirando aqui do centro
Onde tudo começou
A feira fez a cidade
Quem lhe deu prosperidade
Nome, respeito e valor

É bom que fique lembrado
Que a feira veio primeiro
E foi o seu formigueiro
Que deu vida ao povoado
Pertencendo a Monte Santo
O Cumbe era um recanto
Desta terra abençoada
Aqui a feira crescendo
Com as "casa" aparecendo
Deu-lhe vida e salvaguarda

Hoje com a cidade pronta
Querem matar nossa feira
Afirmando uma asneira
Fazendo ao povo uma afronta
Dizendo que é o progresso
Pra mim é só o regresso
Pois vai maltratar o pobre
Lá não tem lugar pra tudo
O projeto é absurdo
E não tem nada de nobre

A feira é nossa cultura
É só o que temos de nosso
Já sinto até o remorso
Se aceitar essa loucura
Vamos perder nossa cara
Só o tolo não repara
O que vai acontecer
A feira ficando pequena
Será no fim uma pena
A bichinha vai morrer

Vai morrer muito bebinho
Quando atravessar o asfalto
E vai é ter muito assalto
Pra tanto pobre velhinho
A cidade vai perder
E o que vai acontecer
É virar um cemitério
Com sua avenida nua
Tirar essa feira da rua
É mesmo um despautério

A riqueza dessa cidade
Não é comércio, é a feira
De segunda a sexta- feira
Pouco vende, é verdade
No sábado o comércio mata
Algo que você constata
E só ver o formigueiro
Falo sem fazer desdém
Todo mundo vende bem
É um shopping verdadeiro

Mudando o seu lugar
Muda também o perfil
É um desmerecido ardil
É um golpe pra matar
A feira vai ficar pobre
E o pobre ficar mais pobre
Não vai ter o que fazer
Lá o espaço é pouco
E o povo vai ser pouco
Que vai comprar ou vender

Esse é o tal progresso
Que chega nessa cidade
Nesse Cumbe, na verdade
E querem fazer sucesso
Só depois vão se dar conta
Que a proposta é afronta
E não pode acontecer
Não podem matar a feira
É uma grande besteira
Logo vão se arrepender

Vamos salvar nossa feira
E salvar nossa cultura
A nossa riqueza pura
É a feira, é a feira
Que agora querem matar
Mudando o seu lugar
Arrancando pela raiz
Não se muda arvore adulta
E podem fazer consulta
É o que todo mundo diz

Mas o povo é quem decide
É quem pode dizer não
Fazendo aglomeração
E à mudança revide
Basta fazer passeata
Gritando e batendo lata
Cá pelas ruas do centro
Para que a cidade veja
Se é que o povo deseja
Que a feira fique no centro.

por Inamar Coelho - setembro de 2009

Texto escrito em 27 de setembro de 2009 na época das discussões sobre mudar a tradicional feira livre do sábado para sexta-feira e sobre a transferência do centro da cidade para o Centro de Abastecimento construído à época.

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